Palavras de Ouvir
E aí, tudo bem? Fevereiro a newsletter começa um pouquinho diferente. Dessa vez não tem “Coluna da Bel” ou “Coluna da Gabi”, mas temos um bom motivo. Lembra que falamos do primeiro evento do Sons da Escrita? Então! Já se inscreveu? O curso acontece em março e, pra vocês conhecerem um pouco mais das mulheres que vão conduzir as aulas por lá, resolvemos convidá-las pra fazer um “feat” na newsletter.
Como já dissemos antes, nos interessa muito abrir espaço para sons além dos nossos, mas não se preocupem - isso não quer dizer que vamos sumir. Ainda essa semana a newsletter chega de novo na sua caixa com a nossa assinatura.
Hoje, segunda, vocês ficam com esse texto delicioso da Tayná. Se você ainda não a conhece, vale a visita em um dos arrobas mais legais que já vimos por aí: Sutilezas Atômicas.
Ela escreve (oi newsletter!), dá cursos e oficinas de escrita criativa, é uma leitora ávida (e compartilha as dicas sem mesquinharia pelo Instagram), trocou o calor do Rio pelo frio de São Paulo faz alguns anos, decorou lindamente (!) um apê onde mora com o marido e com as cachorrinhas e, além de tudo isso, ainda tem um podcast.
Inclusive, pra fazer uso da expressão “vem coisa boa por aí”, vale contar que vai sair um episódio que a Gabi gravou com ela. A conversa começou com os paralelos entre fazer arquitetura e escrever, passando por processo de publicação, até a angústia de desgostar de um livro seu. Merece o play. Te contamos quando sair!
Agora é só passar um café ou um chá, desligar as notificações por uns minutinhos e se deliciar com “Palavras de Ouvir”. Boa leitura!
beijo,
Bel & Gabi.
Silêncio. Foi por influência dele que tudo começou, foi pelo excesso dele que me afastei e é na busca dele que me desdobro. Curioso aceitar participar de um projeto chamado Sons da Escrita quando absolutamente tudo, para mim, nasceu do silêncio.
Que som a escrita tem? Para além da percussão ritmada das teclas ou do cochicho que a caneta faz ao tocar o papel, que som é esse? Fecho os olhos, escuto melhor assim. Estou no sétimo andar; sou uma criança que passa o dia inteiro sozinha e me encontro no apartamento em que morei durante boa parte da minha infância. “Nada de atender ao telefone ou abrir a porta para estranhos”, minha mãe orientava. O número do trabalho dela + ramal estão anotados na primeira página do bloquinho para recorrer em caso de emergência. “Banco Itaú, agência Sete de Setembro, Tânia, boa tarde. Em que posso ajudar?”. Quando enjoava de assistir Chaves, das fitas com desenhos da Disney e das revistas do banheiro, eu escrevia. Nessa época a escrita tinha o som dos barulhos que vinham do corredor: as duas criancinhas do apartamento dos fundos apostando corrida, alguém fechando a porta emperrada da lixeira coletiva, o vizinho do 706 batendo na avó, o espirro escandaloso da dona Ofélia diversas vezes ao dia. Por muito tempo a escrita teve esses sons. Depois me mudei para uma casa maior e escrevia em uníssono ao ronco do meu avô quando tirava um cochilo à tarde, ou à goiabeira o vizinho despejando os frutos no nosso telhado, à panela de pressão chiando aos sábados, ao meu pai lavando o carro na calçada.
Contudo, para ser honesta, não lembro o quê tanto escrevia. Qualquer palpite seria mentira, lembro apenas da necessidade imperativa de estar com meus cadernos e fazer das palavras as irmãs confidentes que eu não tinha. Criança faz segredo bem melhor que adulto.
Por anos, mais à frente, o som da minha escrita condensou todo ruído do escritório onde eu não aguentava mais trabalhar: telefones, fofocas sussurradas entre as baias que separavam as mesas, urgências apitando no sistema operacional, gargalhadas vindas da sala de reunião. Havia um entusiasmo secreto por escrever uma crônica em vez de um e-mail ou o conceito de uma campanha que precisava ser fechada naquele dia. Curiosamente, essa época de tanto cansaço e insubordinação foi o tempo em que mais escrevi. O efeito rebote veio.
Em 2019 enfrentei uma crise de depressão tão dolorida que o silêncio dentro de mim acovardou qualquer barulho externo. Coisa alguma me atravessava, animava ou comovia. Problemas com o pai, questões com dinheiro, cicatrizes de algumas negligências, um medo danado do futuro; nada muito criativo, coisa para outro texto. Eu não ouvia nada, nem queria, muito menos os próprios pensamentos — entender o que sente é ainda mais custoso que sentir. Acontece que o som da escrita é um empréstimo. Sem o sensorial da vida como pano de fundo, larguei meu caderno por muitos meses na gaveta da escrivaninha.
O som da escrita é sempre emprestado. Repito a ideia pois descobri isso agora, escrevendo, enquanto estou sentada numa cafeteria do bairro e exijo do dia um tempo que eu não tinha de sobra. A louça vai ter que esperar e hoje as cachorras não passearão. Preciso daquela insubordinação outra vez. “O tempo para ler é sempre um tempo roubado (tanto como o tempo para escrever, aliás, ou o tempo para amar.)”, disse Daniel Pennac. Somos ensinados que roubar é vergonhoso, mas essa ideia cai por terra quando o assunto é criação. Pequenos delitos são grande parte de uma vida inteira acompanhada da escrita. Roubo uma frase que ouvi na mesa ao lado, roubo um nome para dar à minha personagem, roubo histórias que não me aconteceram, roubo sons pertencentes a outras pessoas, lugares e objetos. Roubo para tentar ressoar algo mais bonito e familiar a quem porventura me lê, claro, mas também a mim. Roubo e escrevo porque, assim, posso manchar com minha digital o que já existe e nunca precisou da minha permissão. A maldita ilusão de que é possível confinar uma ideia à própria assinatura. Se tudo parte de mim, é na escrita que posso inventar o que me aconteceu desde a primeira palavra deste texto até o ponto final da frase que vos fala. Posso dizer a verdade e mentir que inventei.
Posso emprestar esses sons todos a você, ainda que inicialmente eu escreva para mim. E você pode me escrever de volta, sabendo que, ao soltar o texto no mundo, ele nunca mais será seu outra vez. Isso é até bonito. Protejo minhas palavras me esforçando para não aprisioná-las, afinal, entendi aqui, contigo, que o som da escrita vibra sempre no plural. São todos os sons.
Por hoje é só. Obrigada pela leitura! 💌
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